quinta-feira, 28 de abril de 2011

As lágrimas impostas: patê de fígado

Não é de hoje que discuto neste blog as questões relacionadas a minha predileção por comidas retrô, simples e/ou com histórias ( como aqui).

Ao prepará-las, desde o momento da compra dos ingredientes, vou me lembrando das pessoas que me deram a oportunidade de saborea-las, do tanto que eu gostei da delícia, do meu acanhado pedido da receita ao seu "dono", da primeira vez que a preparei e servi, do que me motivou na sua primeira feitura, daqueles que a elegeram como "das melhores coisas que já comi", das mudanças que eu fiz na receita, dentre outras curtições. É por isso tudo, que o prato que é servido dentro desse contexto, fica mais saboroso e  totalmente inesquecível.

Na época das passeatas de estudantes em BH, no período da ditadura militar, tipo 1968, eu morava ao lado da FAFICH, no Santo Antônio. Vez por outra, a nossa rua ficava interditada, porque os militares invadiam tal faculdade e não deixavam qualquer carro, ou pedestre transitar naquele quarteirão.

Nossa! Era uma luta para eu sair de casa para buscar o pão do lanche ou para ir ao armarinho e ao sapateiro e assim cumprir as ordens da minha mãe. Naquela situação, mesmo com 13 anos de idade, eu era acompanhada por um militar, partindo da esquina na minha casa, percorrendo toda fachada da FAFICH e indo me deixar, na esquina da rua Carangola. E ainda tinha a volta para a casa, também. No mesmo esquema. Que mêda...

Por várias vezes, nós jovens filhas do Geraldo, o comunista mor do pedaço, sentíamos os olhos ardendo, por conta do gás lacrimogênico, o qual era lançado aos estudantes da FAFICH e que "respingava" até a nossa casa. Aí, todos nós saíamos para o terreiro da casa para ter algum alívio. Hoje parece filme. Mas era assim mesmo. Putz...

Não podíamos nem reclamar. Afinal, éramos filhas daquele comunista, que já tinha sido preso no dia de 31 de março de 1964, o exato e esquecido (graças) dia em que a tal revolução marcou sua data. "Vai que prendem  o nosso pai de novo", pensavamos aflitas.

Eu tinha 13 anos e ainda não dava o nome certo aos atores desta história. Mas, por minha própria curta história, já sabia que quem estava dentro da faculdade era do bem e aqueles que cercavam a escola, do mal.

Depois que me casei, conheci e convivi com a Maria Célia Bessa, psicanalista colega do meu marido. Era uma mulher belíssima, cheia de atributos intelectuais, culinários, dentre outros que eu não conhecia, pois naquela época eram o estilo, a cultura e, sobretudo, a culinária que me interessavam.

Conheci então o seu marido, o professor Pedro Bessa, um dos meus tipos inesquecíveis, por sua simpatia, ternura e cultura. Confesso que jmais vi uma coleção de música erudita como a dele. Nos nossos encontros, ele nos presenteava com tais peças, meticulosamente escolhidas, reproduzindo-as por um moderno aparelho de som, para a época .

Soube então que era ele, o diretor da FAFICH da época das invasões militares da ditadura e que marcaram a minha adolescência. Ele era aquele carinha franzino, cheio de atitude, que resistia e protegia seus alunos e colegas daquela truculência, ficando ali, entrincheirado junto com eles, até ter garantias de que eles sairiam dali sem qualquer agressão. Ou seja, naquele contexto, ele era o meu ídolo, até então desconhecido...

Adorava conviver com aquele casal tão maduro, tão próximo (em todos os sentidos) e tão ligado às minhas convicções, ao meu passado e aos meus sonhos de um futuro bom.

Nesse convívio, sempre que íamos a casa deles, a Maria Célia nos servia um patê de fígado, que era "o destaque da noite". Tal receita ela aprendeu com avó dela. Ou seja, deve ter bem mais de 100 anos. Eu me apaixonei por tal sabor, de cara. Fiz algumas poucas modificações na receita, considerando a facilidade atual para o acesso aos novos e ótimos produtos culinários.

Há poucos anos, repassei a receita para as minhas queridas amigas Pia e a Conceição, para trazerem nas festas de final de ano da minha casa (aqui) . Elas, por algum problema de comunicação, usaram fígado de galinha, ao invés do de boi como pedia a receita. O resultado ficou, simplesmente, delicioso. Creio que quem me lê jamais provou um patê de fígado de  boi, o qual, embora hard, é muito saboroso e vale a pena conferir. Passo aqui a receita da M. Célia desse inesquecível patê, modificada e atualizada do meu jeito.

Eu bato, aos poucos, no liquidificador, meio quilo de fígado crú de boi (ou de galinha), sem pele, 2 ovos, 1 colher de sopa cheia de farinha de trigo, uma colher de banha,, 200g de toucinho fresco sem pele, 1 xícara de creme de leite, um cálice de conhaque, suco de meio limão,, meia cebola picada, sal agosto, pimenta do reino moída na hora,a gosto, 1 colher de molho inglês,1 pitada de noz moscada, 1 cravo, 1 dente de alho, 2 pimentas da jamaica. Nessa mistura, acrescento algumas pimentas rosas e pretas inteiras.

Unto com banha ( ou azeite) uma forma de bolo inglês, forro a mesma com finas fatias de toucinho defumado, coloco a mistura de fígado, dobrando as fatias de toucinho por cima. Coloco a forma montada em um tabuleiro com água quente (banho maria) no forno pré aquecido médio ( 180 graus) e cozinho por umas 2 horas. Sei que está cozido, quando finco um palito e ele sai "sequinho". Olha só a beleza ( e a delícia) de tal preparação.



Ele pode ser conservado na geladeira por, pelo menos, uma semana e congelado por meses.

Lembrei-me desta história toda por causa da minha amiga Iara, que me pediu tal receita. Iaia, querida, obrigada pela inspiração.

4 comentários:

  1. querida!
    gratíssima pela receita.
    e também pelas lembranças.
    tenho tanta saudade do vovô bizzotto...
    enfim... brindarei à ele enquanto estiver fazendo essa terrine ma ra vi lho sa!!!!
    bjbjbj

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  2. Saudades imensas dele tb, Iara... Mas sem qualquer dor. Somente orgulhos, lembranças, histórias. Que herança boa ele me deixou!!! Só agradeço.

    Na ponta hereditária oposta, cheia de vitalidade: vou me encontrar com o Arthur, amadíssimo neto. Um ano sem abraçar aquele coiso. A vida continua.

    E na organização da minha vida, felizmente, as raízes não se perdem, por nada. bjs

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  3. Querida Claudia,

    O blog ficou lindo...os textos e receitas como sempre deliciosos....adorei.

    bjs e saudades,

    edu jesus

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  4. Edú, minha dúvida é: fundo preto ou branco como está agora ( por sugestão da Ciça, que não gostou do preto).O que vc acha? bj

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