sábado, 26 de outubro de 2013

É a vida que segue:Estrada do Sol

Tenho dito para mim mesma que a vida segue. 

Nos exatos um ano da minha perda terrível, li isto na página da cara amiga: "É a vida que segue". Passei aquele dia com um nó na garganta e o estômago socado, buscando entender como é possível seguir com a vida. 

O dia acabou com a beleza e a delicadeza, dedicadas a ela, por amigos. Belas imagens dela, belas palavras para ela, canção bem escolhida e uma representação de uma Ofélia de Shakespeare muda, expressiva e delicada como ela. Era aquela louca que ela tanto gostava, mas muda. Ofélia se jogou no rio. O pai morto por Hamlet, seu amado, a enlouqueceu e ela se deixou levar pelas águas, passivamente.

Lembrei-me das palavras do amigo que também perdeu um filho: "Passada a dor aguda, a admiração, o carinho, a saudade, que não vem da perda, mas do que deixaram de legal, de humano, de criativo de marotice, nos faz passar a ter uma saudade mais terna, menos dolorida, mas cheia de admiração, acompanhado do sorriso que o jeito deles nos arranca."

Quantos amigos me pedem para voltar a escrever. Eu tento e aí me faltam as palavras  e se elas aparecem, sinto a angústia da perda irreparável e me ponho a chorar.


Mesmo assim, volto aos poucos à culinária, à feitura dos arranjos de flores, ao "cansei desapega" e em breve à costura. Portanto, tendo tais inspirações, volto aos poucos à escrita 

E hoje consegui terminar esta postagem, a qual me pus a escrever há mais de 15 dias.


Compartilho aqui a belíssima canção oferecida a minha filha, pela Júlia Branco, um ano após a sua partida para sempre: Estrada do sol de Tom Jobim e Dolores Duran. Como não tenho a gravação da Júlia, escolhi esta linda interpretação de Tom com o rei Roberto.



Ao me informar sobre esta parceria do Tom com  a Dolores Duran, descobri que ela também se foi muito jovem.

É a vida que segue, com perdas, mas com belas histórias.



segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Tentando voltar: Gnocchi Alla Romana

Muitos amigos tem manifestado sentir falta da minha escrita, cuja capacidade de fazê-la nem sei bem de onde surgiu. Dois meses sem escrever por excesso de melancolia; dez meses de dor doida, de falta, de ausência e de pura saudade insolúvel.

A dor da perda dos pais se transforma em saudade. A dor sem nome da perda de uma filha não se transforma em nada. A gente apenas busca se acostumar com ela e seguir vivendo, mesmo querendo morrer de tanto que dói. Por vezes me lembro dos últimos dias de vida do meu pai, que internado devido a uma infecção numa cirurgia do fêmur me dizia:" Dói demais, é melhor morrer". Ele morreu poucos dias depois.

A dor e a tristeza alheia, quando demais, cansa. Melhor não compartilhá-la com ninguém. Melhor conviver com todos só se for para mudar de assunto. Vai daí que parei de escrever sobre ela e a todos que me perguntam se eu estou bem, eu respondo: sim, mesmo querendo não vivenciar por nenhum segundo mais esta dor tão doída. Daqui prá frente é assim: estar bem é estar com saúde, é prosseguir vivendo, buscando nas atitudes dos amados a beleza e os motivos para prosseguir.

Tanta coisa boa aconteceu nestes últimos dias! Alguma justiça foi feita, meu neto espetacular esteve em meus braços, meu trabalho vai seguindo com algum sucesso, a culinária vem aos pouco voltando para minha vida, estou obtendo uma apropriação satisfatória do meu novo espaço, os filhos vão se dando bem na vida... Mas,  nenhuma delas me trouxe a inspiração necessária para voltar a escrever.

Hoje, ao assistir um belíssimo curta metragem com o Manuel Bandeira "O Poeta do Castelo"de Joaquim Pedro de Andrade, realizado em 1959, que compartilho abaixo, um pouquinho de inspiração apareceu.


Participar do Encontro Saboroso, no último sábado, com amigas e amigos tão queridos, ela aflorou ainda mais. Ali encontrei alguma alegria e dei boas risadas. A anfitriã do dia nos recebeu com delícias primorosas. Destaco aqui a entrada "Gnocchi Alla Romana", simples de fazer e muito saborosa.

Ela põe para ferver um litro de leite integral. Junta aos poucos, uma xícara e meia de farinha de sêmola aos poucos e vai misturando devagar, como se fosse um pirão. Ao engrossar, desliga o fogo e mistura à massa, dois ovos, 4 colheres de sopa de azeite extra virgem( ou duas de manteiga), uma xícara de um bom queijo parmesão ralado. Acerta o sal. Para quem gosta, um tantico de noz moscada ralada vai bem. Dispõe a massa uniformemente em tabuleiro para esfriar. Com um aro cortador ou a borda de um copo, corta a massa em discos, e os leva em um tabuleiro,  untado ao forno alto ( 220graus) por 15 minutos ou até dourar um pouco. Um folhinha da salvia enfeitando os gnocchis e um salpico de queijo parmesão ralado,  antes do forno, vão bem.

Aí, é só servir com o molho de preferência. A cara amiga serviu com um pomodoro super espesso e bem temperado com mangericão e um fio de molho de anchovas. Vejam só abaixo, na foto que eu tirei, que delícia!


quinta-feira, 23 de maio de 2013

Que dia! Bolo de milho para Sônia

Que dia!

De véspera, ao sair da análise, retomada às duras penas, fui recebida no novo lar da irmã mais velha com deliciosos salgadinhos e boas conversas. Foi uma vitória sair de casa para uma visita, após tantos dias de reclusão. Combinamos um encontro para o final do dia seguinte, na procissão de Santa Rita. É como eu digo: seu meio cética, mas cultivo meus valores cristãos e sinto uma paixão por esta Santa, desde criança. Vovó Margarida e as minhas tias queridas eram devotas.

Daí me lembrei da esperada visita da madrinha, que há décadas eu não abraçava, no mesmo horário da procissão. Orientei minha ajudante a fazer um bolo, pão de queijo e por à mesa os delicados aparelhos de chá e café presenteados pelas tias, para receber a cara visita.

Comecei o dia sob explosões de rojão, anunciando o dia da Santa das rosas e das causas difíceis. Da varanda da minha casa, acompanhei por horas a chegada dos fieis, trazendo flores, recebendo benções acendendo velas, buscando soluções para as suas aflições. Pensei nas minhas, revivi todas e chorei muito. No final da manhã resolvi ir até a igrejinha de Santa Rita, não sei bem por quê. Alí somente refleti, chorei, mas não pedi nada. Se a Santa me acompanha, ela sabe do que eu preciso. Me encantei com as barraquinhas de delícias na rua e com a alegria das muitas pessoas, fiéis ou não, que por ali circulavam. Entendi, mais uma vez, que a fé direcionada aos santos pode ser uma festa.

Nos encontramos, eu e minha madrinha, sob forte emoção. Rodeadas pelos móveis feitos pelo nosso avô, pela louça das nossas mesmas tias devotas, sob o som dos hinos cantados na missa da Santa, o som da banda de alerta para o início da procissão, recuperamos um tanto da nossa história esquecida. Ao aproximar a hora da partida, começou a chover forte. Nunca vi isto! chover em maio! Mesmo assim a procissão saiu. Acredito que não existe intempérie que atrapalhe manifestações de fé e alegria. Ficamos abraçadas e comovidas, observando da varanda a passagem das muitas velas iluminando as mãos daqueles que oram por Santa Rita. A madrinha me pos no colo e cuidou de mim, como fez, desde o nosso primeiro encontro e durante muitos anos da minha nenenzice.

Os móveis do vovô Pedro, que sempre me acompanharam.

E aquela mesma explosão de fogos que acendeu este meu dia, veio termina-lo. Agora, com muitos desenhos iluminando o céu de nós duas. Foi um dia que se desenvolveu por enlaces inesperados, por boas  e inacreditáveis coincidências ( será?). Coisas da Santa.

Em homenagem a querida madrinha, eu repasso a receita do bolo de milho que é o seu preferido. Eu não sabia disto, mas a Santa sabia. Ela adorou a delícia.

Para uma forma redonda, eu retiro os grãos de 4 espigas de milho verde e bato no liquidificador com uma lata de leite condensado, 4 ovos inteiros, 100 g de margarina e uma colher de sobremesa de fermento em pó. Disponho sobre a forma untada e levo ao forno pré aquecido a 180 graus por 40 minutos ou até dourar.

E enquanto eu escrevo esta postagem, a minha filhinha interpreta Shubert. É o segundo movimento da Sonata em la maior, aqui interpretada por Sofia Brunelo, que compartilho.



quarta-feira, 8 de maio de 2013

Um dia sempre especial

Compreendi este meu acordar do nada. Ontem, eu estava exausta após uma viagem deliciosa com meus queridos. Acordei do nada ou do tudo. Há sete meses a amiga me trouxe, neste mesmo lugar, a notícia da tragédia que mudou a minha vida, para sempre e para pior. Em todos os cantos da casa escuto os rumores dos choros e os barulhos das providências daquele dia, embora esteja só. Hoje e agora, todos por aqui ainda dormem.

Sei que daqui a pouco esta angústia vai passar e será aos poucos substituida pela alegria de estar com o filho dela, meu neto, amado que hoje completa seus 13 anos. Por isto voltei aqui. Por hoje, por amanhã, dia em que ela completaria 33 anos, pela necessidade de atravessar este caminho, ao lado do neto, sem mistério, muito embora saiba que os mistérios não nos pertencem. Eles são.

Penso que hoje seria um dia muito especial e alegre para ela, como foi  há dois anos atrás, quando todos estavamos juntos nesta cidade, comemorando . Está sendo um dia especial e alegre para mim também. Amanhã, eu já não sei.




domingo, 21 de abril de 2013

Reencontros: Petit Gateau

Desde que, às duras penas, marcamos o retorno àquele lugar, o nó na garganta cresceu. Foi lá, na querida cidade, na casa da amiga, após uma noite agradável, em companhia do marido, da filha, do neto e do casal de amigos, que há seis meses, fui acordada com a pior notícia da minha vida.

Era um dia de sol, no começo. Depois, o dia ficou chorando comigo. O pai do neto, com a querida Maria e os amigos residentes ali, foram chegando aos poucos na casa. Todos em choque. Os donos da casa, mesmo arrasados, tomavam as providências necessárias para o retorno ao Brasil. Eu tentava falar com o filho que ficou, consegui. Daí me veio a angústia de não poder abraçar e aconchegar aquele filho desamparado, que tinha vivenciado a tragédia, distante de nós. Cuidar dele era o maior desejo.

Eu sei que os reencontros com os lugares, com os cheiros e com os queridos serão difíceis. Sinto medo e angústia. Mas também sei que eles são necessários para reaprender a viver esta nova vida sem ela. Sei também, que passadas as emoções tristes dos primeiros instantes, surgirão outros de muita alegria, sobretudo com o neto. É o prosseguir da construção de um novo relacionamento entre avós e neto, sem a filha e a mãe. Somos nós, a família que restou, seguindo em frente, mesmo que com a falta dela, mas buscando honrar a nossa história juntos.

Hoje, ao assistir um video do neto, me animei. Não vejo a hora de me enrolar nele. Compartilho aqui esse ótimo video do Arthur ensinando uma receita francesa de Petit Gateau.
 Vou arrumar minhas malas....

domingo, 31 de março de 2013

Papai

Querido papai

Hoje, resolvi me afastar um pouco da minha pior perda e pensar em você. Sou o que sou, por você, que me deu a medida certa e exata de ser como sou. Trata-se daquele ser correto e exato, aquele que sempre procuro, nos momentos de perda, e que me esforço para ser.

Ai pai, que saudades de você. Saudades da sua exata palavra para o momento de aflições, do seu sorriso, do seu maravilhoso canto, da sua comida deliciosa, da sua revolta justa e sobretudo do rumo certo que você sempre me deu.

A vida foi muito dura comigo, mas eu sobrevivo com a força que você me ensinou a ter.

Há 49 anos aquela horrível revolução me tirou você, por algum tempo, mas por terríveis longos tempos. Eu tinha somente 10 anos. Mas eu sabia que você ainda era o meu rumo. Quem te tirou de mim é que não tinha rumo.

Obrigada por sua presença sempre ativa nos momentos mais decisivos da minha vida. Obrigada por seu canto, por sua voz nas minhas noites mais difíceis, por seu extrordinário assovio nas minhas manhãs sem esperança.

Obrigada Geraldo por você ser meu pai.

Ainda bem que você não está por aqui agora, vivendo a perda da sua neta, minha filha. Está giga difícil. Espero que você tenha se encontrado com ela por aí, onde você estiver. 

Compartilho aqui aquela canção que nós, suas filhas sempre cantamos para você: Pai e Mãe do Gilberto Gil, na interpretação da Simone.

Uma página virada: Páscoa

Após tanto tempo de recolhimento e silêncio, não poderia deixar de me manifestar hoje: Páscoa, dia de ressurreição e de renascimento.

Já no início da semana uma página daquela história tosca foi virada. Na véspera da audiência, as orquídeas dela floriram na minha varanda, como que num aviso de que ela estaria sempre presente entre nós, num alento.  Mesmo assim foi muito difícil reviver tudo. As declarações emocionadas do meu filho e da amiga também vítima e testemunha da tragédia foram duras e tristes. E a gente ficou ali, se apropriando, mais uma vez, daquela história sórdida. Neeeiiiimmmm! 


Por outro lado, tive a sensação de que uma página foi virada em minha vida. Me sinto mais livre para viver o meu luto e por consequência, estou mais livre para seguir com a minha vida. Algum renascimento surgiu daí. Pude receber com calma as minhas doces recordações da Páscoa em família. Por anos convivi com o gostoso sufoco em conciliar as minhas atividades profissionais com a busca, a compra dos ovos de chocolate escolhidos, o esconde esconde dos mesmos e a preparação do cardápio do almoço de Páscoa. Mantive tal tradição até recentemente. Meus filhos, continuaram a ganhar ovos de chocolate por todo o sempre, até o ano passado.


Este ano, contudo, passei em branco. Afinal, a maior amante de ovos de chocolate não está mais por aqui. Ela era a primeira de todos a encontrar os ovos escondidos, a primeira a consumir todo o chocolate e ainda a avançar nos chocolates dos irmãos mais comedidos. Além disto, o meu neto está longe, a minha mãe não está mais aqui, a antiga casa da família e o jardim do Retiro, locais de esconder os ovos, não nos pertencem mais.


Hoje, para a honrar a tradição e sua sequencia natural, na família que se formou daí, preparei uma almoço de Páscoa: filet ao molho de mostarda. Para 6 A 8 pessoas usei um filet que cortei em fatias grossas como para tornedôs, as quais impus uma amassada com as palmas da mão, para dar uma afinada na carne. Aqueci a frigideira até trepidar. Depositei nela um fio de azeite e selei as grossas fatias da carne temperadas, na hora da fritura, com sal e pimenta do reino do moinho. Após coradas de todos os lados, retirei e coloquei em descanso. Na frigideira da fritura, coloquei cebolas roxas, finamente picadas, com uma colher de sopa de manteiga. Depois de translucidas, depositei na mistura uma taça de espumante seco, de boa qualidade, duas colheres de mostarda de Dijon com sementes e uma xícara de creme de leite fresco. Esperei reduzir o molho até no ponto de creme (quando ao passar o dedo nas costas da colher de preparo, forma-se um fio, bem definido). Acertei o sal e a pimenta e pronto..


Servi com arroz, feijão e massas recheadas trazidas por convidados. Bão demais.


Para a minha queridinha ausente, ofereço um mega ovo de páscoa. Espero que de lá, ela possa saborea-lo com tudo que tem direito.


Feliz Páscoa para todos vocês, queridos amigos!


sexta-feira, 8 de março de 2013

Para todas a mulherzinhas

Me perguntava sempre: "Como é que uma mulher tão séria e responsável como eu pode ter este lado tão fútil, este lado tão mulherzinha". Hoje eu sei que ele representa a minha intimidade exclusiva. Como eu me cansava muito em doar minha mulherice para tantos e por tantos anos, eu deveria sim ter um lado só meu. Nós mulheres somos tão guerreiras, tão dedicadas a tudo, tão intensas e sensíveis, que temos sim de cultivar o nosso lado mulherzinha.

Dentro deste contexto compartilho com todas a mulherzinhas como eu, mais um belo trecho daquele livro e "Todas as Mulheres do Mundo" de e com Rita Lee

"Ele disse que ela havia de se por bonita para o pescador. Sorriram. Ele começou a penteá-la e a formar-lhe o cabelo para que tivesse um desenho qualquer. Sorriram. Desencantaram uns batons e outras humidades e mais pós de pintar a cara e foram sublinhando a Isaura aqui e acolá, como se marcassem o que se via de importante, como se propusessem uma leitura repetida de algo que não era feito de palavras mas que comparecia no rosto dela igual a página de uma história escrita. A Isaura nunca se imaginara com os olhos bordejados de azul claro, um azul  que escondia as olheiras tristes das noites de espera. Nunca pensara que a beleza pudesse estar simplesmente preguiçosa à sua mercê. à mercê de um maior empenho..." (Walter Hugo Mãe em O Filho de Mil Homens)

terça-feira, 5 de março de 2013

Seguir lutando: Os filhos

Lá se vão quase 5 meses de dor e ausência. De luto. Minha irmã me conforta dizendo que o dela demorou 6 meses. Mas ela pode elaborar a separação do filho gravemente doente, por mais de um ano. Eu não. Comigo foi assim, de repente. Alguns poucos dias após a minha despedida dela para a viagem: "você é a melhor mãe do mundo. Te amo. Boa viagem" as últimas palavras dela para mim. Só a vi de novo ali, deitada na caixa coberta de Lisianthus brancos, como se ela estivesse dormindo em sua mais extrema alvidez.

No meu luto, luto para lidar com a vida sem ela. Prefiro a contemplação da TV. Por vezes fujo dela e busco fazer algo mais produtivo, caminhar, trabalhar. Não encontro o desejo e nem a concentração necessária. Tento ler um romance. Mal começo. Pego outro, nem chego ao meio. 

Mas um eu consegui terminar, posto que me trouxe as palavras necessárias. Dele, eu retiro e compartilho um dos muitos trechos belos.

"...Os filhos, pensava ele, são modos de estender o corpo e aquilo a que se vai chamando de alma. São como continuarmos por onde já não estamos e estarmos, passarmos e estar verdadeiramente, porque ansiamos e sofremos mais pelos filhos do que por nós próprios, assim como nos reconfortam mais  as alegrias deles do que satisfação que diretamente auferimos. Por isso temos gula pelos filhos, uma gula do tamanho de absurdos, sempre começada, sempre incontrolável. E queremos tudo dos filhos como se nunca nos bastassem, nunca nos cansassem porque, ainda que nos cansemos, estamos incondicionalmente dispostos a continuar, uma e outra vez até que seja o corpo extenuado a desistir, mas nunca o nosso ímpeto, o nosso espírito. Até porque desistir de um filho seria como desistir do melhor de nós próprios. Cada filho somos nós no melhor que temos para dar. No melhor que temos para ser..." (Walter Hugo Mãe em O Filho de Mil Homens)


sábado, 23 de fevereiro de 2013

Texto da Ciça e da Bia

Hoje mais uma boa recordação veio até mim. Um texto dela publicado no caderno Pensar do Jornal Estado de Minas.
É bom, sinto orgulho; é ruim, sinto saudade e revolta.
Alguns amigos, por não terem acesso ao jornal, me pediram para reproduzi-lo aqui. 
Aí vai... 
"O exército do esquecimento
Cecília Bizzotto e Beatriz França

Publicação: 23/02/2013 04:00

Houve um tempo em que tentei fazer de mim mesma um exército, ao qual deveria servir. Construía cada atitude, cada linha de pensamento como tarefas que deveria realizar com o mais rígido controle da razão possível. Procurava me disciplinar pensando nas palavras de Borges, sobretudo de Shakespeare. Dormir sem sonhar.  A minha meta era o esquecer. Tentei muitas vezes me disciplinar e alcançar o objetivo através da arte, do meu trabalho. Mas arte pra quê? Mas o teatro havia se tornado tão cruel para mim como a peste descrita por Artaud. Teatro e vida são a mesma coisa. A alma do ser humano só pode ser apalpada se houver a presença de um ator diante de uma plateia. Mas alma é o quê? Sabe-se que o teatro se baseia na mentira pactuada e não se pode ignorar que esse pacto é uma bela tentativa de encontro com a verdade. Mas qual verdade? O material humano, indispensável para o exercício do ofício, estava ácido demais pra mim e me provocava aftas. Então, doer pra quê?

Passei a me espelhar nos loucos para apreender mais sobre a realidade cruel. Gastava a maior parte do tempo acordada para ter o domínio de todas as coisas, e o principal: o domínio de não sonhar. Em vigília, fascinada pela loucura, talvez pudesse alcançar a verdadeira verdade absoluta. Como se, assim, eu pudesse controlar todas as possibilidades de angústia e sofrimento que me atormentavam a maior parte do meu tempo. E, assim, também  acabava por esgotarem-se as possibilidades de prazer cuja única fonte continuava na minha boca, ao tirar, com minhas unhas, pelinha por pelinha dos meus lábios constatando, através do gosto de sangue, uma tentativa de arrancá-lo. Não falar mais. Não fumar mais. Não beber mais. Não beijar mais. Comer jamais. Fazia lembrar a pretensão do cocainômano. Esquecer a fome, o sono, a falta, o desejo. Frígida da vida. Estéril. Nada. Morta. Pensava que esse exército do esquecimento estava me disciplinando para nascer de novo. 
Arte para quê, quando se tem a loucura? 

No entanto, quando olhava para as minhas cadelas, pensava em como são felizes, amadas e amáveis, sem responsabilidades, sem as questões do ser. Elas já estão. Preferia ser uma delas.  Se possível poderia renascer como um pombo, só para ter o prazer de voar, como já fiz em bons sonhos que tive na minha infância. Mas como? Sonhos... Só me restava... ser eu?? Arte pra quê? 

Transformar o exército do esquecimento em jardim, onde meu filho poderia conhecer a realidade do mundo e brincar comigo? Talvez. 

Pra voltar à vida,  peguei carona nessas apneias do coração retomando as rédeas dos meus cavalos antes dominados pelo exército do esquecimento. 

O problema não era com a arte, com o teatro. Com eles ia tudo bem. A questão era  estar disposta a dedicar-se tanto tempo àquilo que não é valor para o sistema. O artista, tão supérfluo, tão pobrinho, tão apaixonado, tão cheio de ilusões, segue o seu curso e alimenta-se de algo inexplicável que vem dos sonhos, da loucura, dos extremos de tentar compreender seu lugar no mundo – só quem verdadeiramente conhece o ofício entende essa devoção.

Arte pra quê?

Arte para quê?

Arte para quê? Vamos, me digam! Quantas vezes essa pergunta foi feita e mal respondida? Quantas vezes deixamos de ouvir uma resposta? Sintam-se à vontade para responder a pergunta, não deveria haver razões para constrangimentos ou para se questionar essa função. Mas essa é a função que cabe à arte e a nós, artistas e sociedade, que deveríamos sempre lembrar e re-construir esta função. Arte pra quê?

Muitos como eu se avolumam às margens e viram cada vez mais maiorias solitárias. 

Arte pra quê? 

Aceito minha posição marginal! 

Arte pra quê?

Se o sistema é um rio onde não posso estar, que a vida não deixe de correr porque pertenço às margens.

Arte pra quê?

O imaginário não pertence ao sistema. Doce ilusão! Arte pra quê?

Arte pra quê?

Eu me transformo para algo que me aguarda e desconheço. 

Teatro pra quê?

Foi necessário percorrer tanto caminho para reconhecer que o ideal não passa do ideal.

Arte para quê?

Em vários sonhos que tenho, quando preciso me posicionar, ou me defender, acreditando na justiça e na sua balança, perco a voz e a habilidade de falar. Esse é um tipo de sonho que me persegue e que tenho tido com frequência. Quando acordo, me sinto aliviada por ter recuperado minha voz e fala. E sempre me pergunto: como fazem os que não as têm? Não seria essa uma das funções do teatro ou da arte? Dar voz, dar lugar, se fazer ouvir? 

Eu – assim como tantos outros artistas – me preencho de sonhos incompletos, de fragmentos do cotidiano, de falas, de olhares, de instantes, do subjetivo para a criação. O homem e sua fonte riquíssima e inesgotável de contradições. O meu ofício prescinde vocação para imaginar, para ser incoerente, para me apaixonar. Se não for possível multiplicar as facetas, as perspectivas, as possibilidades, não há sentido em produzir arte, não há graça em viver a vida. Que mania de achar que há regras para tudo, que não há deslocamentos, que tudo tem um devido lugar. O que é devido? Pare de se desculpar e simplesmente aprecie, observe, deixe o caos se instalar docemente. Permita que o sublime tome as proporções do grotesco. Não há controle na criação, não há controle na vida. Há fluxo, movimento, devires. Persigo a imperfeição, persigo a humanidade. 

Teatro para quê? Arte pra quê?

Respondam quando e como puderem e nunca se esqueçam de se perguntar."

Olhos cor do mar

Este texto foi escrito para a performance idealizada e realizada por Cecília Bizzotto, a Ciça, na Casa UNA, em 19 de setembro de 2012. Tudo começou quando ela me pediu alguns escritos para um documentário que pretendia fazer. Encaminhei vários textos que havia feito há alguns anos – e nunca tinha tido coragem de mostrar a ninguém – e que tratavam de questões sobre o ofício do artista. 

Ela gostou do material e isso me deixou muito entusiasmada, porque a opinião dela era sem dúvida muito cara para mim. Ciça acrescentou a esses pensamentos soltos uma bela introdução em que conta sua história como atriz e sua relação com o ofício, e costurou tudo em torno da questão que sempre a inquietou: “Teatro pra quê?”. Terminado o texto, trocamos alguns e-mails e nos encontramos para pensar a melhor forma de dizê-lo durante a performance. Foram meus últimos encontros com Ciça. 

Não foi difícil gostar dela. Reunia muitas qualidades. E como aprendi com ela! Essa joia rara de olhos cor do mar, inquietos, era uma artista generosa, criativa e atrevida, que conseguia levar para a cena paixão, leveza e densidade. Sem dúvida nenhuma, a morte de Ciça marcou a história de nossa cidade e deixará uma lacuna na cena mineira.

*Beatriz França é atriz, jornalista e integrante da Companhia Lúdica dos Atores

Para dar voz  às pessoas

Cecília Bizzotto era atriz e performer, cujo trabalho artístico se desenvolveu em formas associativas de produção e voltado para explorar as realidades produzidas pelos sonhos, pela loucura e pela própria arte. Foi sócia-fundadora da Companhia Lúdica dos Atores, grupo de teatro que, desde 2003, se dedicou a explorar a característica popular da obra de Shakespeare. Cecília trabalhou de 2005 a 2009 como professora de interpretação e preparação corporal, ministrando oficinas pelo projeto Arena da Cultura.

A atriz desenvolveu projetos que buscavam estabelecer conexões entre a linguagem audiovisual e teatral, para dar voz ao público, aos artistas e às comunidades. Foi professora de teatro no projeto Valores de Minas, em Belo Horizonte.

O exército do esquecimento é resultado de um projeto artístico intitulado Devir atriz/eu não passei nesse edital. Cecília concebeu, produziu e dirigiu o projeto, tendo como assistente de direção visual Carlosmagno Martins. Dele participaram as atrizes Beatriz França, Christina Fornacciari, Dayse Bellico e Samira Ávila. 

* Cecília Bizzotto morreu aos 32 anos, baleada durante um assalto à sua casa, em BH, em outubro de 2012.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Mistérios da vida e da morte: O que será?

Mesmo desgarrada da casa, sinto saudades daquela que não era só a casa, mas o lar completo. Por lá, desta vez, a mangueira frondosa que invadiu a frente da casinha dela, não deu manga, nem o pé de acerola ( que ela adorava) da quadra frutificou. Acho que é por saudades. O limoeiro de limão siciliano, por sua vez está carregado. Acho que é por homenagem à D. Nilda, que me presenteou a muda.

É assim que a vida segue: cada dia que passa, um pedaço da história, que estava guardado no fundo da memória, vem à tona e tornam as ausências ainda mais presentes. Muitas vezes a lembrança decorre do reencontro com algum objeto esquecido em alguma caixa de mudança ou em algum canto do antigo lar.  O antigo lar continua sendo desmanchado, lentamente, na medida da capacidade de suporte em elaborar as perdas. Os últimos objetos estão sendo retirados, seguindo novos destinos, entrando em outras histórias. Tento me despedir das histórias confinadas neles. São momentos em que fico meio em estado de choque, como se eu estivesse dentro de um filme, cujo roteiro está longe de fazer parte do mundo que eu imaginava como real. Por vezes eu choro ao me deparar com algumas cenas deste filme triste.

Por falta de espaço e condições adequadas no novo lar, doei quase todas as minhas orquídeas para as irmãs. Estas são muitas e compunham um canto adorável do antigo lar.

Antes de me separar delas, fui observando uma a uma, como que me despedindo. Verifiquei que duas estavam soltando o pendão da florada. Num triz, tomei-as de volta para florirem no novo lar. Só depois de algum tempo me dei conta que essas duazinhas orquídeas tão saudáveis eram as únicas pertencentes à minha filha ausente. Mistérios da vida e da morte...

Compartilho uma maravilhosa canção, cuja lembrança me foi trazida, recentemente por um amigo desta filha, ao conversarmos sobre luto e melancolia: À Flor da Pele ou O Que Será, de Chico e Milton e , claro, interpretado pelos dois, arrasando.



 Aqui no blog, como plano de fundo instalei imagens das flores dela, tal e qual! Vou antecipar um pouco a sua florada.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Sem sentido: Aos nossos filhos

É quando as palavras faltam, mediante ao inexplicável de uma tragédia, que as canções tomam conta da gente, como se fossem o único elo de contato com o mundo exterior. É assim comigo. Meus últimos dias foram de desassunto, falta de inspiração e de mudez.

Passei a entender a expressão "sem sentido" de uma outra maneira, na forma da falta da visão, do sabor, do tato, do olfato. Me resta a audição, por enquanto. Por isso, as canções passam a fazer "sentido".

Compartilho aqui uma canção belíssima do Ivan Lins e Vitor Martins, numa comovente interpretação da Elis (não podia ser diferente). Ela é dedicada às Cláudias, Marílias, Beths, Glórias, Cissas, Manas, Reginas, Cristianes, Nilcéias, Consolações e tantas outras mães que perderam seus filhos, em especial, hoje, às mães de Santa Maria.


segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Verão: Olhar sobre o mar da Bahia

Enfim, verão e de volta ao mar da Bahia. Uma amiga escreveu mais ou menos assim: "na beira do mar a vida cresce. Sinto que minha vida é aqui." Era assim comigo, na beira do mar: a minha vida crescia, meu coração apaziguava, o cheiro leve do iodo me enchia o peito. 

Hoje, a minha vivência adquiriu uma pequenez tão imensa, que custo a me identificar com a grandeza do mar. Mas ele continua sendo o lugar que me torna um pouco melhor e mais leve, mesmo sendo uma pessoa muito menor do que eu era antes.

O retorno ao mar, ainda que repleto de recordações da última vez, em que a família era completa, vem tomando conta de mim bem devagar. Ainda sinto medo de colocar os pés na areia, enfrentar as ondas mínimas, provar na barraca de praia o delicioso camarão frito, regado a caipi de pitanga. Isso tudo é revivido mais sob a ausência dela do que como atos de prazer como era outrora. Mas ainda assim é bom  encontra-la no meu olhar, quando contemplo o horizonte ovalado do mar.

Compartilho aqui uma interpretação de um dos meus baianos preferidos de uma das minhas canções preferidas. Parece que não tem a ver com o contexto. Mas tem..



"Verão, o sol que todos os dias nos aquecia,
que esplêndidos crepúsculos coloria
E que agora me queima com agressividade"


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